Nelson Rodrigues, o desbocado padroeiro do futebol e do Fluzão, hoje aprontou das suas: desde o além, providenciou uma epifania coletiva e todo mundo que entrou em campo foi capaz de acessar aquela zona esquecida lá no fundo de seus cérebros: relembraram como se joga futebol!
E como lembraram! Fluminense e São Paulo hoje me fizeram sentir como quando ouço os mais velhos contando sobre os jogos das eras douradas de seus times ou quando assisto àquelas reportagens legais estilo "Baú do Esporte": fizeram um jogo fluido, onde todo mundo conhecia exatamente as maneiras da brincadeira, onde todos pareciam acreditar que a bola tem sim que rolar num jogo de futebol, por mais que a regra do momento seja a ditadura da velocidade e do vigor, apenas.
Dirão por aí que o primeiro tempo foi meio morno, concentrado na intermediária, nenhum goleiro tendo muito trabalho. E é verdade, vá lá. No entanto, não vimos faltas feias, não vimos (não-)matadas de bola bisonhas; até as figurinhas conhecidas pela falta de habilidade, como nosso veloz e dedicado porém completamente quadrado zagueiro Elivélton, resolveram fazer o básico pra não fazer feio, acho que influenciados pelo reinante zelo com a redondinha.
No segundo tempo, o rápido gol do Fred (aqui, pausa pra piada infame: consegui usar as palavras "rápido" e "Fred" numa mesma frase! Rá! Lide com isso!), numa jogada muito bem feita, acrescentou o único ingrediente que faltava ao jogo: a vontade séria de vencer. Até então, os dois times se respeitavam demais, até porque os dois jogavam demais, era jogo de time grande. Daí pra frente, começaram a não apenas jogar, mas jogar pra ganhar. Pensei que ficaria ruim pro Flu, que se acostumou nesse campeonato a fazer o primeiro gol e se entregar a uma pasmaceira abominável, que quase sempre acabou levando a um resultado pior do que queríamos, mas me enganei. Era a noite do estranho, e, mesmo tendo sofrido logo o empate, o Flu continuou muito bem, lúcido; o jogo continuou muito bom, e empolgante, e de qualidade.
Foi então que deixaram o nosso 9 fazer o pivô. Aviso aos zagueiros do mundo: não se deixa um centro-avante de qualidade fazer o trabalho de pivô, caras! Mesmo nessa época de caça aos noves tradicionais, mesmo nessa época babaca de que todo mundo tem que ser veloz e em que "falso 9" soa quase como um mandamento bíblico, não se deixa um 9 matar de costas pro gol, girar e achar alguém mais bem posicionado. Tsc, tsc. Erro fatal da zaga paulista, Fred achou Wagner na esquerda, que cortou pro pé fraco e soltou um tiro como manda o almanaque: fora de alcance pro Ceni. Belo gol, bela jogada, futebol em estado puro.
E como era a noite do estranho, teve gol de falta pro Flu. Nem lembro quando foi a última vez que vi alguém do Flu fazendo um gol de falta de cobrança direta pro gol. Mas o importante é que dessa vez o Conca fez, e que golaço! Daqueles em que o goleiro só consegue ficar parado e rezar. Mas nesse caso, rezar não adiantaria pro Ceni: São Nelson estava do nosso lado, e deve ter sussurrado ao pé do ouvido do Conquinha: "Na gaveta, moleque!", como em certo comercial de TV.
Admito, leitor! Pode ser que eu esteja tão encantado assim com o jogo porque ainda estou inebriado com o clima, talvez eu o esteja adjetivando com muito mais generosidade do que qualquer outro ser humano faria, mas, aqui pra nós, o que é escrever sobre futebol sem poder se inflamar? O que é futebol sem uma dose de paixão? E ainda digo mais: já havia decidido fazer esse texto quando o jogo ainda estava 1 a 1. Então, talvez seja paixão, sim, mas não pelo resultado. Pelo futebol. Três pontos pra ele.
PS: muito bom o time do São Paulo. Qualquer resultado hoje seria justo e não seria demérito do lado perdedor, como de fato não foi. E vale o adendo: Ganso, que eu via como eterna promessa, parece ter voltado a jogar bola, mas mais do que isso, parece ter encontrado graça no jogo. Não tem mais aquela atitude de "ah, eu sou f*** nisso aqui, mas f***-se", não é mais aquela menina bonita que sabe que é bonita e que a vida vai ser mais fácil por causa disso. O Ganso me parece ser agora aquela menina que sabe que é bonita e, indiferente a isso, quer cursar engenharia.
PSS: Torço que essa partida não tenha sido mesmo apenas um caso de epifania coletiva, que todo mundo comece a jogar bola como se deve jogar bola, como se tivessem algum interesse no jogo além do financeiro e usando todo o conhecimento de causa que hoje mostraram que têm. Oremos!